quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Para Nico


As mãos e os frutos
Eugénio de Andrade

(19/01/1923 - 13/06/2005)

I

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma
flores abertas aos meus segredos!

II

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

III

Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
para as fontes a beber-te a face.

IV

Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos
ficamos longamente à sua espera.

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.


Algumas preposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração


Os pássaro nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

(Ruy Belo - In. Homem de palavra(s))

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A árvore do esquecimento


-Esta é a árvore.
-A árvore?
-A árvore do esquecimento.

Não havia em toda a redondeza um exemplar maior de mulambe*. A árvore era conhecida, desde há séculos, como "a árvore das voltas": quem rodasse três vezes em seu redor perdia a memória. Deixaria de saber de onde veio, quem eram os seus antepassados. Tudo para ele se tornaria recente, sem raíz, sem amarras. Quem não tem passado não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnésia, ganha-se em amnistia.

* imbondeiro

(Mia Couto - O outro pé da sereia. p. 276)