domingo, 16 de maio de 2010

O Sonho

Era ela e o papel em branco. Também havia o sonho. E as leituras do dia anterior. Queria agarrar o sonho. Fazê-lo parte do dia. Concretizar sua mensagem. Teria mesmo uma mensagem? Acordou assustada. As imagens ainda estavam diante dela e a presença da avó ainda era muito forte. Procurou se acalmar. Respirou fundo e recapitulou fragmento por fragmento daquele sonho que acabava de sonhar. O rio, os livros. Uma criança desconhecida, porém amiga. Um homem conhecido, mas inimigo. Seu avô – por parte de mãe – também passava pelo sonho. Sim, ela lembra que ele apenas contornou a sala cheia de pessoas sem rosto e parou, meio curvado, diante dela. E disse: - Queria falar com a sua mãe, mas parece que ela está ocupada... Falo com você, então. E completou: - Cuida da sua irmã. Ela está fraquinha. E a menina respondeu: - Eu cuido. E seu avô catou uns apetrechos na cozinha, com a sua ajuda cuidadosa, e partiu para seus afazeres corriqueiros. O sonho mudou de lugar. Quer dizer, o ambiente do sonho, após a partida do avô, era outro. Encarando a folha branca, mas agora com algumas frases salpicadas, ela tentava achar esse pedacinho que unia um espaço do sonho ao outro. Em vão. Não é possível! Tinha passado tantas vezes o sonho feito filme em sua cabeça para não esquecer ao acordar na manhã seguinte. Mas esqueceu. Passou, escapou. Feito o tempo: que passa sem que a gente consiga agarrá-lo. Lembrou dos guarda-chuvas coloridos do livro que lia na noite do sonho. A chuva. Se transformou em rio no seu sonho. Era um rio caudaloso e forte. Era escuro também. A menina teve medo. Teria que atravessá-lo de qualquer jeito. Sentia isso no seu sonho tão real. Mas como? Não queria... relutou. Mas: a criança desconhecida ajudou. Trouxe música pro sonho escuro. Trouxe também a força. Entraram na água, as duas. Lado a lado. A correnteza puxava a menina depressa. Avistou um precipício. Gritou que não podia seguir em frente e a voz certeira da nova amiga: Então vá para o outro lado. A menina nadou com tanta força pro lado contrário que: chegou nas pedras da margem. A criança já estava em pé nas pedras e a ajudou a sair do rio. Difícil de explicar o esforço que fizeram, as duas. Mas a menina saiu. Ofegante. A criança virou as costas e a menina reparou como eram estreitinhas. E ficou só. Sozinha. Mas no lugar do rio, agora, existiam pedras. Ela pulou. Uma. Por. Uma. Saltitante. Agora tinha alguma luz no ambiente. E mais alguém apareceu. Um homem. Ela teve a impressão de conhecê-lo. De onde? Sua imagem era parente, mas a sensação que transmitia não era confortável. Pediu um beijo. Ela recusou veementemente. Ele deu uma gargalhada e falou: - Prefiro assim, sem beijo. Se desvencilhou do homem. Avistou a escrivaninha. A chave. Seria mesmo uma chave? Era uma chave triangular, mas sim, era uma chave. Que porta abriria? Ou será que a chave só fecharia: portas? Lembrou das chaves pesadas da casa do avô. Não o avô por parte de mãe. O outro. Por parte de pai. Seriam as mesmas chaves? Mas a fotografia gritava. Largou a chave. Foto bonita. Tão clara. Emanava luz. Era branca, inteirinha. Não, espera. Parece que tem alguém ali. Parada. Sim, uma mulher bonita. Parece feliz. Ela e os livros na estante grande. Ela e os livros no seu colo. Lembrou da sua vó – por parte de mãe. A vó gostava de livros. Os livros espalhados pelo chão. Muitos livros. Quase que os livros expulsam a mulher da fotografia. Mas a menina fixa os olhos na mulher. Os livros eram apenas a moldura. Emoldurada. Ela estava. Parecia feliz. Satisfeita. Ela e os livros. Só. Sozinha. Mas...É a mãe do meu pai, pensou a menina. Não é a mãe da minha mãe. Os pares eram outros no sonho. Interessante, pensou a menina. Novamente. Tinha um pouco de dificuldade em chamá-la de vó. Havia morrido quando tinha um ano. Mas era sim, sua vó. E ali, naqueles instantes enquanto encarava a fotografia, conheceu-a intimamente. Como se fosse parte dela mesma. Da menina. Não mais criança. Sem medo. A menina acordou assustada. E foi dormir no quarto da mãe.