segunda-feira, 30 de junho de 2008

Como eu escrevo - Pepetela


A questão pressupõe duas perspectivas. A primeira será a descrição do contexto. E vamos a ela. Escrevo normalmente o menos vestido possível, ou com roupas largas, se o frio do quarto não o permitir. Mas, como vivo em clima tropical, os calções são suficientes, desde que o ar condicionado esteja ligado. Não posso escrever suando nem com os pés gelados. Pelo meio termo, encontro as condições ideais. Uma coisa: impossível escrever com um cinto a apertar as calças, se for forçado a usá-las. Mesmo num cibercafé, tiro o cinto e desaperto o botão de cima, o que só acontece para escrever e-mails.
Prefiro escrever de manhã, mas já fui adepto total da escrita nocturna. De facto, depende das circunstâncias. Não penso que os horários interfiram muito com a criatividade. Ponho sempre música, muito baixinho, apenas para cortar o ruído do ar condicionado, o qual por sua vez já tinha abafado o barulho da rua. A música é só instrumental, clássica ou moderna, pode ser Bach ou guitarra espanhola, não pode é ser cantada, porque as palavras me distraem. A música, essa, de facto nem a oiço. Só quando o CD termina é que reparo. E ponho outra.
Mas passemos à outra perspectiva, provavelmente a mais interessante. Se escrevo um romance, primeiro tenho uma ideia o mais vaga possível do que vou fazer. Há sempre vários temas em cima da mesa, há sempre alguns já começados, por vezes meia dúzia de linhas apenas. Sucede que fiquem dezenas de anos a amadurecer, sem que lhes mexa. Vou escrevendo coisas, como lhes chamo, coisas… E, de repente, uma frase, um personagem, ou um tema me agarram. Pronto, fui apanhado e agora é só prosseguir. Se foi um personagem, vou tentar descobrir o que tem no corpo e por trás. E ele ou ela se vai revelando ante os meus olhos admirados. Depois, esse personagem precisa de estar em acção, qualquer que ela seja. Porque isso de personagem sem acção é para prazer de estetas, não de leitores.
A acção vem naturalmente e desenrola-se. Com ela, surgem os outros personagens. Não há segredo nenhum nem feitiço, é simples, é só seguir os personagens, pois a todo o momento eles nos dizem o que querem fazer. Claro que tento controlar um pouco as coisas, para não haver demasiadas contradições.
Se o que me agarra é uma frase, faço dela o começo do livro. E continuo com ela. É como um rio, nasce no meio de rochas e depois vai crescendo com as afluentes e com as chuvadas.
O escritor é apenas a Natureza ou os deuses que lhe vão alimentando e fazendo engrossar o caudal, até ao mar. E a obra de repente diz ao escritor, estou no fim, sinto-me acabada. É só pôr o ponto final.

(terça-feira, 11 de Março de 2008) In.: http://timeout.sapo.pt/news.asp?id_news=1191

terça-feira, 24 de junho de 2008

"Red Balloon" - Paul Klee / "Caminho" - Camilo Pessanha



Caminho

I.

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque só é madrugada quando chora.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Alteridade.


"Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores [...]. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões."

E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta [...] eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade.

Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código [...]? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro [...] Interfiro, desescrevo, para que conquiste a partir do instrumento da escrita um texto escrito meu, da minha identidade [...] Temos de ser nós. 'Nós mesmos.' Assim reforço a identidade com a literatura."

Manuel Rui ("Eu e o outro - o invasor")

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Poema do beber no antigamente
(Rui Nogar)

dobro a esquina da memória
a mais próxima dos amigos de então

e ali fico
sob a luz que no poste
me derrama em mil sombras
que uma a uma reconheço

o que fui o que sou
o que um dia quiseram que eu fosse
mas não fui
o que nunca por nada serei
o que tudo fizeram por não ser
mas fui
o que a esquina da memória dobrou
e no poste sob a luz se inspirou

sou eu não sou
na dialéctica da vida

fui aquele que nunca foi
sou aquele que sempre será

assim
a beber no antigamente
ficou-me a sede
do eternamente