terça-feira, 23 de dezembro de 2008


FELIZ NATAL!

QUE 2009 SEJA UM ANO REPLETO DE ENERGIAS POSITIVAS!


sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

“Um livro o ensinou a não saber nada – agora já sabe.”
(Manoel de Barros)

Gosto de oferecer palavras aos meus amigos,
mesmo não sendo minhas.
Assim, não minhas, elas carregam uma carga diferente...
Como se tivessem maior liberdade para acontecer em cada um que lê.
Assim, digo não-dizendo...
Livre de questionamentos.

(será?)

Giselle Veiga
(dezembro/ 2008)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Para os de perto e os de longe...

Palavras para o velho abacateiro
(Ondjaki)

Antigamente as pessoas eram pessoas de chegar. Não sabíamos fazer despedidas.

palavras da avó Catarina


Quando chegámos da praia, o céu estava à espera que as pessoas todas se recolhessem para poder ordenar às nuvens que começassem a largar uma grande chuva molhada, era até raro em Luanda naquele tempo fazer uma ventania daquelas, os baldes no quintal começaram a voar à toa, os gatos nas chapas de zinco não sabiam bem onde era o buraco de se esconderem, os guardas da casa ao lado vieram a correr buscar as akás que estavam encostadas no muro e o abacateiro estremeceu como se fosse a última vez que eu ia olhar para ele e pensar que se mexia para me dizer certos segredos, não sei o que o abacateiro me disse, não soube mais entender e pode ter sido nesse momento que no corpo de criança um adulto começou a querer aparecer, não sei, há coisas que é preciso perguntar aos galhos de um abacateiro velho, cumprimentei o guarda enquanto corria no quintal a segurar os baldes que queriam levantar voo, fui fechar a porta da casa de banho e da despensa, a bomba de àgua disparou e assustei-me, o vento estava a pôr-me nervoso, olhei a mangueira com mangas verdes, olhei os galhos secos do abacateiro, reparei no encarnado vivo das romãs bem madurinhas ali perto do mamoeiro, olhei as uvas na videira e, enquanto olhava o céu escuro, ainda pensei que era tão estranho aquelas uvas terem um sabor tão nítido a manga adocicada, fui fechar a portinhola da casota onde ficavam as botijas de gás e ainda recolhi duas toalhas que estavam na corda, voltei a entrar na cozinha, com o corpo a pingar de chuva e suor fresco, a t-shirt estava tão molhada que voltei lá fora para deixá-la já pendurada na corda, parei um pouco a deixar a chuva cair sobre a cabeça, fechando os olhos, escutando o ruído que ela fazia cá fora no mundo e dentro de mim também, queria ver quantos pensamentos eu podia inventar - e pensar - ao mesmo tempo que ouvia aquele ruído tipo de música de uma orquestra bêbada, ri, ri sozinho quando abri os olhos e vi a cadeira verde onde às vezes, mas raramente, também o camarada António gostava de ensaiar um sono distraído, caiu a carga de àgua que o céu tinha prometido pela cor e pelo vento soprado, enquanto a ventania diminuía de repente, a chuva caia como um embrulho gigante de redes de pesca que tivesse escorregado do armário de um pescador que estava lá muito em cima, nas alturas, era tanta água que mesmo ver a casa do Jika estava difícil, o mundo parecia um deserto molhado naquela tarde, aidan conseguia ouvir, mas mal, os passos dos guardas a correr e, entre tantas cascatas de água com a poeira da videira, do outro lado, tipo filme de western, um gato vesgo ficou parado em cima do outro telheiro a olhar para mim - seria o gato vesgo que eu tinha acertado no olho com o chumbo da pressão de ar? -, tive um pouco de medo, lá de dentro, a qualquer momento, a voz da minha mãe podia vir me perguntar se eu era maluco de estar ali com aquela chuva toda a pedir mesmo para ter uma crise de asma complicada, ali fora o gato calmo tinha ficado parado a olhar para mim, olhava mais com o olho vesgo que com o olho que via bem, perto de mim estava um ferro abandonado das obras do vizinho, sempre desconfiei dos gatos calmos, não me mexi, ele sim, devagarinho, saltou até perto das raízes da mangueira, parou de novo, foi a andar muito devagar, parecia que para ele não chovia e fazia um sol que lhe causava preguiça de partir, não me mexi, as mãos estavam na corda, como se eu estivesse preso com as molas de estender a roupa, a água caiu mais forte e de tanto não ver nada tive medo que o gato voltasse às escondidas e me atacasse, decidi entrar em casa, assustei-me com a voz da minha mãe - "o pai e eu estivemos a falar sobre aquele assunto" - , o meu corpo todo molhado, pensei que a minha mãe ia me ralhar de eu estar a trazer a chuva para dentro de casa, espalhando as gotas do meu corpo pelo chão limpo da cozinha, a mesma cozinha antiga que todos nós dizíamos a rir que era do camarada António, a minha mãe tinha os olhos molhados também e um grande silêncio invadiu a casa escolhendo esse espaço entre nós para ficar, eu olhava o chão pingado como se ele fosse muito mais distante, ouvia cada gota cair no chão e ao mesmo tempo pensei que não devia prestar atenção àquilo, pois outra coisa mais importante estava prestes a acontecer - "tu há tanto tempo que falavas nisso, nós estivemos a falar" - , a minha cabeça viajava pelo corredor escuro porque fazia esse domingo cinzento de chuva e ninguém tinha ainda acendido as luzes, a minha cabeça deslocava-se devagarinho e subia as escadas espreitando primeiro a sala onde a minha irmã mais nova tinha acabado de adormecer com o corpo todo cansado da praia e a pele cheia do sal do mar, onde tínhamos passado quase todos os sábados e domingos da nossa infância, eu subia as escadas sem fazer barulho, o meu pai podia ter decidido dormir um pouco e só acordar mais tarde para começar com um café na cozinha e ir ver se na televisão as equipas nacionais estavam a jogar futebol, o corredor lá em cima era um mar pesado de silêncios e isto não é poesia falada, havia ali um silêncio que pesava se uma pessoa se mexesse em qualquer direcção, parei, quieto, a escutar a tarde que chovia lá fora, os ecos do comportamento das trepadeiras e das árvores enormes dos vizinhos, podia quase desenhar essas árvores sem olhar para elas, a mais cambuta do lado esquerdo, na casa da tia Mambo, devia ser um abacateiro e era maior que o nosso, tinha folhas gordas e um cheiro sempre poeirento mesmo que chovesse, e do lado direito, na casa da tia Iracema, havia uma árvore que imitava ou era mesmo um pinheiro muito alto e ligeiramente torto onde os pássaros - não sei porquê - gostavam de fazer voo rasante quando traziam minhocas na boca para dar aos filhos que tinham acabado de nascer e ficavam no telhado da tia Iracema a fazer barulho, parei, quieto, a escutar as trepadeiras, as árvores, uma buzina, algumas vozes, o cão do Bruno a ladrar tão longe e o barulho da caneta da minha irmã mais velha a escrever os pensamentos dela de domingo à tarde quando chove em Luanda, o que não se ouvia era o gritinho dos filhos desses pássaros que eu não disse mas são andorinhas, eles deviam estar a tremer de frio e de medo, todo mundo sabe, as andorinhas são como os gatos, não gostam nada da chuva, se calhar é por causa do barulho dos trovões, não sei - "filho, assim a pingar ainda te constipas" -, a porta do meu quarto estava aberta e uma luz nenhuma saía dele entrando no corredor a chamar-me, o mundo cinzento espreitava pela minha janela, entendi que havia uma nesga aberta nos vidros e, por ali, todas as vozes da tarde, da chuva, da trepadeira, das árvores, entravam pelo meu quarto para me dar sinais estranhos que o meu corpo não sabia aceitar, nem a minha cabeça, uma vontade de lágrimas me visitou, cocei a pele da buchecha que era um gesto antigo para falar com as minhas vozes de dentro, pingava menos o meu corpo, o calção molhado deixei junto à porta, entrei no meu quarto de tão poucos anos, fazia-me confusão entender porquê que eu vivia aquele quarto como um espaço antigo, como se eu fosse uma pessoa também de antigamente, e não era - via-se no espelho o meu corpo magro e a pele toda esticadinha a contornar os dedos da mão, os lábios desenhados quando eu os olhava sem compreender as curvas deles, os olhos que eram mais difíceis de olhar porque me traziam aos olhos essa chuva de eles ficarem encarnados - "nós pensamos que, se é realmente o que tu queres, podes ir estudar para outro país" -, pensei que lá nesse país teria outro quarto, mas não este, o antigo, o dos cheiros e das roupas e das músicas e dos livros e das escritas tristes e secretas, da mala com os livros do Astérix, ou A náusea, ou o Cem anos de solidão, ou os "gracilianos" como eu lhes chamava, ou a camisa amarela escura com manchas pretas e acastanhadas que o meu pai trouxe de Portugal e, desde que a vi, soube que amava esse tecido de acalmar os olhos que às vezes choravam em frente ao espelho da incompreensão, porque o corpo mudava, a voz mudava, as mãos no corpo mudavam, era visível que eu preferia acordar mais tarde que acordar mais cedo, era visível, para mim, que ouvia barulhos e sentia cheiros que não podia dividir com ninguém, e a avó Agnette continuava a partilhar as noites comigo, contando, inventando, alterando as estórias todas, as de antigamente, as do presente e as outras, como se o tempo fosse o saco de ar com bolinhas que ela gostava de rebentar, como se, às 2h da manhã - entre risos de cumplicidade, olhares de fascínio que acendiam a madrugada, ternuras faladas como se fossem verdades de ofertar - ela me dissesse, devagarinho, com a voz convicta e os factos arrumados caoticamente, que o futuro não era uma coisa invisível que gostava de ficar muito à frente de nós mas antes - ela dizia como frase de adormecimento mútuo -, antes um lugar aberto, uma varanda, talvez uma canoa onde é preciso enchermos cada pedaço de espaço com o riso do presente e todas, todas as aprendizagens do passado, que alguns também chamam de antigamente - "assim a pingar, ainda te constipas" -, a minha mãe disse com chuva nos olhos bem encarnados, o corpo dela encolhido a dar marcha atrás na cozinha, no trajecto que ela tinha feito para vir devagarinho falar comigo, sem me ralhar por eu estar a molhar a cozinha, sem me falar da asma e dos brônquios, sem quase olhar para mim, eu também sem quase saber como olhar para ela, como dizer - a ela e a mim - que essa viagem, essa partida de ir embora, de repente me chegava fora do tempo, num terreno que ia muito além da dor e das lágrimas, num lugar que nenhum escrito meu podia ter conseguido explicar nem nenhuma lágrima conseguiria apagar, a minha mãe retirava devagar o corpo da cozinha, fiquei com os olhos postos nas gotas tombadas no chão, sem poder saber, nunca mais, o que era gota o que era lágrima, como se eu fosse um cego e naquele momento todos os cheiros e todas as dores da infância me pesassem no corpo, e isso estava bem, era normal, mas um peso me fechou os lábios e eu não soube o que dizer à minha mãe, talvez as frases dela trouxessem pedido de resposta, talvez se eu tivesse falado nesse tempo fora do meu corpo ela me tivesse dito, ou mostrado com os olhos, que aquele era, de qualquer modo, o tempo deles, dos meus pais, aí talvez os meus lábios dissessem que esse tempo de sabermos o momento de partir tinha acontecido fora do meu próprio tempo, e que nos últimos anos eu havia estado perdido, triste e confuso, num espaço tão grande que afinal eram apenas duas cadeiras de tecido encarnado, uma secretária, o armário embutido, o sofá-cama encarnado que eu mesmo tinha escolhido e usado essa palavra, "encarnado", e riram porque era uma palavra de antigamente na boca de uma criança, esse espaço, com esse sofá-cama, com esse colchão fininho, com essas molas fracas, onde eu dormi tanto tempo com a avó Agnette, onde ela me ensinou madrugadas e deu todas as estórias e o desdobrar de todos os tempos que quis dar, esse espaço enorme assim tão pequinino era apenas um quarto, com a enorme janela virada para a trepadeira, que estava perto da poeira dela, que estava perto das flores, que estava perto da botija de gás vazia, que estava perto do contador de água, que estava perto da relva, que estava perto do cacto, que estava perto dos caracóis, que estavam perto das lesmas, que estavam perto da baba, que estava perto do portão pequeno, que estava perto da caixa de correio branca sem cartas, que estava perto da rua, que estava perto de mim - "se tu queres ir para outro lugar, nós também achamos que é melhor".
Deixei os braços pousarem na madeira inchada e húmida, abri um pouco a janela a pensar que isso de olhar a chuva de frente podia abrandar o ritmo dela, ouvi lá embaixo, na varanda, os passos da avó Agnette que se ia sentar na cadeira da varanda a apanhar fresco, senti que despedir-me da minha casa era despedir-me dos meus pais, das minhas irmãs, da avó e era despedir-me de todos os outros: os da minha rua, senti que rua não era um conjunto de casas mas uma multidão de abraços, a minha rua, que sempre se chamou Fernão Mendes Pinto, nesse dia ficou espremida numa só palavra que quase me doía na boca se eu falasse com palavras de dizer: infância.
A chuva parou. O mais difícil era saber parar as lágrimas.
O mundo tinha aquele cheiro da terra depois de chover e também o terrível cheiro das despedidas. Não gosto de despedidas porque elas têm esse cheiro de amizades que se transformam em recordações molhadas com bué de lágrimas. Não gosto de despedidas porque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança.
Desci. Sentei-me perto, muito perto da avó Agnette.
Ficámos a olhar o verde do jardim, as gotas a evaporarem, as lesmas a prepararem os corpos para novas caminhadas. O recomeçar das coisas.
- Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.
- Vão para casa, filho.
- Tantas vezes de um lado para o outro?
- Uma casa está em muitos lugares - ela respirou devagar, me abraçou. - É uma coisa que se encontra.
(ONDJAKI. Os da minha rua. 2007)

sábado, 6 de dezembro de 2008

Caeiro em gotas...

IX

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

X

'Olá guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?'

'Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?'

'Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.'

'Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.'"

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Fitando horizontes, não acabo. Vou tecendo com o que permaneceu.
Se me sobra algum espaço, logo escasso... Desvio os olhos e finjo não ser eu.

Quero outras guerras em teu olhar, novas formas de amor e medo.
Quem sabe ainda caberá no afago uma só lacuna de desassossego...

Cambaleando por entre desejos recebo o que não é meu.
Inquieto-me com o tempo a findar...
Dobro a esquina, inverto a direção.
Mudo de ares, de mares...Digo não!

Palavras estendidas horizonte a dentro. Não findo, na estrada ainda há um velado desconforto.
Caminho rumo ao porto, em busca de naus e desesperos ...
O que ficou é um desafio diário de dor e compreensão.
Já se vão as horas tardias, janela a fora... movediças.


Giselle Veiga e Otavio Meloni
(setembro/dezembro de 2008)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Para Nico


As mãos e os frutos
Eugénio de Andrade

(19/01/1923 - 13/06/2005)

I

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma
flores abertas aos meus segredos!

II

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

III

Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
para as fontes a beber-te a face.

IV

Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos
ficamos longamente à sua espera.

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.


Algumas preposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração


Os pássaro nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

(Ruy Belo - In. Homem de palavra(s))

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A árvore do esquecimento


-Esta é a árvore.
-A árvore?
-A árvore do esquecimento.

Não havia em toda a redondeza um exemplar maior de mulambe*. A árvore era conhecida, desde há séculos, como "a árvore das voltas": quem rodasse três vezes em seu redor perdia a memória. Deixaria de saber de onde veio, quem eram os seus antepassados. Tudo para ele se tornaria recente, sem raíz, sem amarras. Quem não tem passado não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnésia, ganha-se em amnistia.

* imbondeiro

(Mia Couto - O outro pé da sereia. p. 276)

domingo, 31 de agosto de 2008

"Imagino que nenhum idiota jamais tenha negociado a alma com o diabo: o idiota é idiota demais, ou o diabo diabólico demais - não sei qual dos dois. Ou você pode ter um espírito tão magnificamente elevado que se mostrará totalmente surdo e cego a tudo que não sejam visões celestiais. Nesse caso, a Terra, para você, é só um lugar de passagem - e não me atrevo a dizer se representa uma perda ou um ganho ser assim. Mas a maioria de nós não é nem de um modo nem de outro. A Terra, para nós, é um lugar onde vivemos, onde precisamos nos habituar às visões, aos sons, e aos cheiros também [...] E é aí, não vêem, que a força de vocês intervém, a fé na sua capacidade de cavar buracos discretos para neles enterrar as coisas - o seu poder de devoção não a si mesmos, mas a um trabalho obscuro e exaustivo. [...]"

(Coração das Trevas - Joseph Conrad)

terça-feira, 19 de agosto de 2008

"Bonito dia para se morrer", pensei ao olhar a bola amarela que manchava o céu azul. Mais adiante, depois de ter dado cabo das pequenas obrigações diárias, meus olhos pararam em uma senhora. Era magrinha, cabelos branquíssimos, semi-presos com grampos. Andava devagarinho...cautelosamente. Suas frágeis mãos pareciam tatear o ar quente que flutuava pelo dia.
Não sei porque motivo ela me chamou a atenção. Talvez por eu ter sonhado com minha bisavó na noite anterior ou ainda por gostar de me deparar com velhinhos...eles me transmitem um conforto e me despertam uma compaixão incríveis. Sem mencionar a saudade gostosa que sinto daquilo que não vivi...
Diminui o passo a fim de acompanhar, por mais alguns instantes, aquela senhora. Tentei imaginar como seria seu rosto...Mas, ao me lembrar dos outros compromissos do dia acelerei as passadas e ultrapassei a velhinha. Não quis olhar para trás para descobrir suas verdadeiras feições. Preferi guardar na minha memória o esboço imaginário daquele rosto, assim como guardo a saudade do tempo que não vivi.
Atravessei a rua. Estava vazia, como se todos estivessem se esfumaçado no espesso ar quente...nenhum barulho. Uma paz grandiosa dominou a rua, o dia...e ela era tão forte e tão palpável que foi preciso cerrar os olhos para sentí-la inteira...saboreei aqueles segundos como se fossem os últimos da minha vida. Não! como se fossem os últimos segundos do mundo. Tive a certeza de que todos sentiam o mesmo que eu...O tempo passava mais lento.
Bonito dia para se morrer...

domingo, 17 de agosto de 2008

Chama, chuva, saudade.
Alegre pensamento
Disfarce.
Fotos maculadas.
Visão distante
Distrações forçadas.

Caminhando, correndo,
de volta às raízes
Terra, reverso.
Eu confesso no fim.


Giselle Veiga, Gisele Valle, Thiago e Monique
(9/11/2006)

domingo, 10 de agosto de 2008

Balões Coloridos...(Música:"Palhaços" - Egberto Gismonti)

Para as crianças grandes que andam por aí...

"[...] Pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas em um livro? Que significam esses símbolos mortos? Nada, absolutamente. Que é um livro, se não o abrirmos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas. Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante".

(Jorge Luis Borges/1978)

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O PALHAÇO (Para meu cunhadinho)


Gostava só de lixeiros crianças e árvores
Arrastava na rua por uma corda uma estrela suja.
Vinha pingando oceano!
Todo estragado de azul.
(Manoel de Barros - Matéria de poesia)

sábado, 12 de julho de 2008

Mundo Pequeno (Manoel de Barros)

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

"Venenos de Deus, remédios do Diabo" (Mia Couto)


"São beijos-de-mulata, as flores do esquecimento. Plantam-se junto aos cemitérios para que os mortos se esqueçam de que, em algum momento, foram viventes. (...)

- Eu vim semear estas flores. Tirei-as do cemitério e vou semeá-las por aí, vou semeá-las em toda a Vila Cacimba".
(p. 187-188)

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Como eu escrevo - Pepetela


A questão pressupõe duas perspectivas. A primeira será a descrição do contexto. E vamos a ela. Escrevo normalmente o menos vestido possível, ou com roupas largas, se o frio do quarto não o permitir. Mas, como vivo em clima tropical, os calções são suficientes, desde que o ar condicionado esteja ligado. Não posso escrever suando nem com os pés gelados. Pelo meio termo, encontro as condições ideais. Uma coisa: impossível escrever com um cinto a apertar as calças, se for forçado a usá-las. Mesmo num cibercafé, tiro o cinto e desaperto o botão de cima, o que só acontece para escrever e-mails.
Prefiro escrever de manhã, mas já fui adepto total da escrita nocturna. De facto, depende das circunstâncias. Não penso que os horários interfiram muito com a criatividade. Ponho sempre música, muito baixinho, apenas para cortar o ruído do ar condicionado, o qual por sua vez já tinha abafado o barulho da rua. A música é só instrumental, clássica ou moderna, pode ser Bach ou guitarra espanhola, não pode é ser cantada, porque as palavras me distraem. A música, essa, de facto nem a oiço. Só quando o CD termina é que reparo. E ponho outra.
Mas passemos à outra perspectiva, provavelmente a mais interessante. Se escrevo um romance, primeiro tenho uma ideia o mais vaga possível do que vou fazer. Há sempre vários temas em cima da mesa, há sempre alguns já começados, por vezes meia dúzia de linhas apenas. Sucede que fiquem dezenas de anos a amadurecer, sem que lhes mexa. Vou escrevendo coisas, como lhes chamo, coisas… E, de repente, uma frase, um personagem, ou um tema me agarram. Pronto, fui apanhado e agora é só prosseguir. Se foi um personagem, vou tentar descobrir o que tem no corpo e por trás. E ele ou ela se vai revelando ante os meus olhos admirados. Depois, esse personagem precisa de estar em acção, qualquer que ela seja. Porque isso de personagem sem acção é para prazer de estetas, não de leitores.
A acção vem naturalmente e desenrola-se. Com ela, surgem os outros personagens. Não há segredo nenhum nem feitiço, é simples, é só seguir os personagens, pois a todo o momento eles nos dizem o que querem fazer. Claro que tento controlar um pouco as coisas, para não haver demasiadas contradições.
Se o que me agarra é uma frase, faço dela o começo do livro. E continuo com ela. É como um rio, nasce no meio de rochas e depois vai crescendo com as afluentes e com as chuvadas.
O escritor é apenas a Natureza ou os deuses que lhe vão alimentando e fazendo engrossar o caudal, até ao mar. E a obra de repente diz ao escritor, estou no fim, sinto-me acabada. É só pôr o ponto final.

(terça-feira, 11 de Março de 2008) In.: http://timeout.sapo.pt/news.asp?id_news=1191

terça-feira, 24 de junho de 2008

"Red Balloon" - Paul Klee / "Caminho" - Camilo Pessanha



Caminho

I.

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque só é madrugada quando chora.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Alteridade.


"Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores [...]. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões."

E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta [...] eu não posso retirar do meu texto a arma principal. A identidade.

Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código [...]? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro [...] Interfiro, desescrevo, para que conquiste a partir do instrumento da escrita um texto escrito meu, da minha identidade [...] Temos de ser nós. 'Nós mesmos.' Assim reforço a identidade com a literatura."

Manuel Rui ("Eu e o outro - o invasor")

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Poema do beber no antigamente
(Rui Nogar)

dobro a esquina da memória
a mais próxima dos amigos de então

e ali fico
sob a luz que no poste
me derrama em mil sombras
que uma a uma reconheço

o que fui o que sou
o que um dia quiseram que eu fosse
mas não fui
o que nunca por nada serei
o que tudo fizeram por não ser
mas fui
o que a esquina da memória dobrou
e no poste sob a luz se inspirou

sou eu não sou
na dialéctica da vida

fui aquele que nunca foi
sou aquele que sempre será

assim
a beber no antigamente
ficou-me a sede
do eternamente

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Àqueles que ainda sabem sorrir...


"Do que provém esta desoladora decadência do riso? Haveria um estudo a compor sobre a 'Psicologia da Macambuzice Contemporânea'.
Eu penso que o riso acabou - porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização. Ninguém ri - e ninguém quer rir. Temos todos o indefinido sentimento de que o riso estridente e claro destoa na atmosfera moral do nosso tempo."

("A decadência do riso" - Eça de Queirós)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Os Girassóis

Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por esta flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão, tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

(Eugénio de Andrade)

terça-feira, 6 de maio de 2008

E não é...?

"Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência aumenta a tristeza"

Eclesiastes 1:18

domingo, 4 de maio de 2008

Para minha irmãzinha...


"Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do acaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas."

(Manuel de Barros, O livro das ignorãças)
"As coisas que não existem são mais bonitas."
(Felisdônio)


"Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar no
horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas
ruas de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas."

(Manuel de Barros, O livro das ignorãças)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

terça-feira, 29 de abril de 2008

Veja bem, meu bem...

Veja bem, meu bem
Sinto te informar que arranjei alguém
pra me confortar.
Este alguém está quando você sai
E eu só posso crer, pois sem ter você
nestes braços tais.
Veja bem, amor.
Onde está você?
Somos no papel, mas não no viver.
Viajar sem mim, me deixar assim.
Tive que arranjar alguém pra passar os dias ruins.
Enquanto isso, navegando vou sem paz.
Sem ter um porto, quase morto, sem um cais.
E eu nunca vou te esquecer amor,
Mas a solidão deixa o coração neste leva e traz.
Veja bem além destes fatos vis.
Saiba, traições são bem mais sutis.
Se eu te troquei não foi por maldade.
Amor, veja bem, arranjei alguém
chamado saudade.
(Marcelo Camelo)

domingo, 27 de abril de 2008

Madrugada rasga o visgo, segue devagar provocando luz. Aurora intrometendo-se diluindo o silêncio. Brota da ânsia cortante. Ignora minha ousadia, alimenta candidamente o outro eu. Não deixando digitais em minh´alma...


João

Giselle
Marcelo
Rodrigo
Igor
Carlos
Rodrigo

26/05/2006
Festa do CREPE!
Chão no pensamento enquanto vem vento agitado no pescoço. Correu a distância rasteira que festeja, ainda, intacta, a proximidade da saudade. Tarde esquecida, escura, densa... Hoje o nada vale clichê, mesmo sendo infinito. Logo o momento representa, divinamente, a dúvida. Não conservo dor, mesmo agora, mesmo minha. Só acontece...


Fabrício Soares
Felipe
Giselle Veiga
João Cavalcanti
Juliana Veiga
Rebeca Soares
18/05/2006

sábado, 26 de abril de 2008

Camiseta usada sobre a cadeira. Silêncio na varanda. Hospício de sombras. Vento sussurra gritando nada. Mentes fervem mentindo. Sobem fazendo barulho, acalentando deuses imaginários, que pedem socorro. Desminto! Enquanto falo, pássaros sobrevoam pensamento. Óbvio, não seria prejuízo? Despeço os abrigos que constituem algum vestígio possível. Roupas coloridas perambulam pela calçada vestindo luzes despistadas. Fogos incandescentes estilhaçam sujeitos indecisos. Corro porque sinto falta de algo meu. Aonde chegarei amanhã? Em nenhum guarda-roupa inventado. Loucura? Não... Embriaguez.


Aline Miranda
Gabriela Brandão
Giselle Veiga
Juliana Bessa
Juliana Veiga

12/05/2006

Precisa explicar, é?!


Resolvi explicar o meu blog também!
Não acho tão necessário, mas acho válido.
Bom, as pessoas verão aqui muito mais citações e paráfrases do que textos meus. Infelizmente eu não tenho esse dom! (Seria dom uma boa palavra?!) Bom, que seja um árduo trabalho...não tenho paciência...uma pena. Mas também não sofro muito com isso. Prefiro ler. Leio os outros e teço impressões. Aí, quem sabe um dia, entre sonhos e realidade eu acabe por me arriscar a brincar de escrever?

sexta-feira, 25 de abril de 2008

"(...) Eu acho que a vida é uma invenção. Se você quer inventar pro ruim você inventa pro ruim, se quiser inventar pro bom você inventa pro bom.
(...)
Mentira! Ninguém sabe qual é a verdade [sobre a existência]. Ou você escolhe dizer que tudo é uma merda, que não tem sentido nada...não ajuda ninguém, pode até ganhar o Prêmio Nobel, mas não ajuda ninguém. Eu prefiro o cara que bota a vida pra cima, já que ninguém sabe qual é a verdade. Eu vou botar pra baixo?!"

(Ferreira Gullar no filme "Vinicius de Moraes")

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Quando eu tô triste me escondo dentro de mim. Fico enrroladinha como se tivesse medo do pé escapar por entre as cobertas. E nesse vazio silencioso percebo que só eu posso cuidar de mim... Só eu me entendo. Só eu me escuto. Eu me basto pelo que sou.
Sozinhando em eternidades respingo-me nos outros.
(Fevereiro/2008)